‘Um país misterioso, repleto de histórias e mitos macabros que perduram há séculos, onde o urso-pardo-europeu ainda vagueia pelas montanhas repletas de florestas de encantar.’
Os pneus tocaram no chão e finalmente chegamos a terras húngaras depois de uma viagem desconfortável. Esticamos as pernas e rapidamente apressamo-nos para o que seriam os nossos aposentos, mesmo no centro da capital. Tínhamos apenas um dia para visitar a cidade, o que é pouquíssimo tempo para conhecer a principal cidade de um país, mas os nossos objetivos eram outros e muito mais interessantes. Não sou pessoa de cidades, mas confesso que Budapeste revelou-se uma agradável surpresa, um verdadeiro museu arquitetónico ao vivo, que vale a pena voltar para conhecer melhor. Pela frente esperava-nos uma road trip de cerca de 1200 km até Constança, uma cidade Romena junto ao mar negro, onde nos juntaríamos a uma estação de esforço constante de anilhagem científica de aves durante 5 dias, com o objetivo de trocar experiências e enriquecer os nossos conhecimentos. No total éramos 8, todos com algo em comum: gosto pela natureza e uma grande amizade que caracteriza o nosso grupo de anilhagem – o GVC.
© Daniel Santos Photography
Budapeste, Hungria
A Aventura Começa
O ruído do motor se fez ouvir pela primeira vez quando as pessoas mais atrasadas entravam apressadamente para o autocarro. Eram cerca de 21 horas quando o autocarro partiu com destino a Cluj-Napoca, uma cidade Romena que fica a cerca de 9h de Budapeste. O tempo foi passando lentamente, mas infelizmente estava demasiado escuro para apreciar a paisagem e depois de várias cestas acordei com o autocarro a parar. Estávamos na fronteira, quando um polícia com cara de poucos amigos entrou no autocarro e começou a confiscar os documentos de identificação de todos os passageiros. Passaram-se largos minutos e sem percebermos ao certo o que se estava a passar (afinal estávamos a atravessar a fronteira entre dois países da EU) o polícia acabou por devolver finalmente os documentos e voltamos à estrada. Quando chegamos ao nosso destino, os primeiros raios de sol já espreitavam pelo horizonte e foi em Cluj-Napoca que alugamos aquele que seria o nosso meio de transporte para os próximos dias, uma carrinha de 9 lugares.
Nesse mesmo dia seguimos caminho e depois de várias horas de viagem, chegamos à nossa primeira paragem, Sibiu, uma pequena cidade de aspeto antigo, mas muito bem preservada. Este local foi uma agradável surpresa, não só pela sua beleza, mas também porque depois de tantas horas de viagem conseguimos relaxar e almoçar mesmo no centro histórico da cidade. Até aqui tudo tinha sido espetacular, a comida, os locais que visitamos, as paisagens, mas foi a partir da tarde deste dia que as experiências mais incríveis aconteceram.
O grande Carnívoro Europeu
Depois do almoço, seguimos em direção a um local que se revelaria o meu preferido de toda a viagem, a parte sul dos Cárpatos romenos. Os Cárpatos são a segunda cadeia montanhosa mais longa da Europa (apenas os Alpes Escandinavos são mais extensos), percorrendo 5 países diferentes num total de cerca de 1500 km e albergam as 3 maiores espécies de carnívoros da Europa, o urso-pardo-europeu (Ursus arctos arctos), o lobo (Canis lupus) e o lince-euroasiático (Lynx lynx). Decidimos que a melhor forma de visitar a região seria percorrer os 90 km da famosa estrada Transfăgărășan. Esta estrada foi construída entre 1970 e 1974, com o objetivo de facilitar a circulação militar através das montanhas em caso de invasão Soviética e durante a sua construção pensa-se que centenas de pessoas perderam a vida, devido às reduzidas condições de trabalho em clima alpino. À medida que nos aproximávamos do início da Transfăgărășan e a planície ficava para trás, as altas montanhas dos Cárpatos emergiam no horizonte e as suas faces de aspeto acidentado e íngreme tornavam-se cada vez mais evidentes.
Cárpatos, Roménia
A planície desprovida de vegetação arbórea, foi dando lugar a florestas de folhosas, que com o aumento progressivo da altitude foi transitando para florestas densas de coníferas. A estrada estava cada vez mais íngreme e a paisagem era de cortar a respiração, as árvores estavam cobertas de neve tornando tudo ainda mais mágico. Assim que passamos a linha das árvores, a paisagem tornou-se mais aberta e fomos presenteados com uma vista incrível dos picos destas montanhas, onde a rocha escura contrastava com o branco da neve que tinha caído recentemente. Deste ponto conseguimos ver o que nos esperava, uma estrada sinuosa com curvas íngremes e fechadas, que sobe até os 2000 m de altitude. Depois de curvas e contracurvas, chegamos ao topo e ficamos novamente encantados com o que vimos: deste ponto tínhamos uma vista panorâmica espetacular das extensas montanhas cobertas de neve.
© Daniel Santos Photography
Cárpatos, Roménia
Continuamos o percurso, agora a descer a encosta oposta da montanha e em poucos minutos voltamos a embrenharmo-nos nas florestas densas de folhosas. Uma das minhas grandes esperanças para esta viagem e um sonho desde criança, era ver um urso-pardo-europeu ao vivo. Apesar de estas terras serem conhecidas pela presença da espécie e de não haver melhor local na Europa para os ver, é sempre difícil encontrar estes animais selvagens, especialmente tendo em conta que a curta janela de tempo que tínhamos disponível não nos permitia desviar de rota para procurar estes animais.
Depois de curvas e contracurvas sem vermos qualquer animal, já estávamos a perder a esperança. Do nada e para nosso espanto um enorme e corpulento urso macho, de pelo escuro, descansava sentado na berma da estrada a ver os carros a passar. Pode parecer impossível, mas é verdade, o animal que considerava-mos quase como ilusão observar nesta viagem estava sentado calmamente na berma da estrada! Paramos a escassos metros e estava tão surpreendido e deslumbrado com o que estava a ver que nem me dei ao trabalho de tirar fotografias.
© Marta Ferreira
Urso-pardo-europeu (Ursus arctos arctos)
Era incrível o à vontade deste animal, que via os carros a passar a poucos metros e nem pestanejava. Este tipo de comportamento não era certamente o que eu esperava, pois imaginava-os muito mais fugidios. Mais tarde percebemos que aparentemente os turistas têm o hábito de alimentar os ursos selvagens nesta região, que estão a perder o medo às pessoas. Este é um grande problema para a conservação da espécie, por duas razões: em primeiro lugar a nossa comida não é saudável para estes animais e em segundo lugar este comportamento está a fazer com que os ursos se aproximem mais das populações locais, criando conflitos, o que muitas vezes resulta na morte dos animais.
Poucos metros à frente voltamos a ser surpreendidos por outro urso, desta vez mais pequeno, a atravessar a estrada. Se me dissessem antes de fazer esta viagem que iria ver dois ursos a poucos metros de distância e confortáveis com a nossa presença, eu diria que essa pessoa só poderia estar a delirar. Um dos meus grandes sonhos tinha sido realizado e foi muito mais intenso do que aquilo que tinha imaginado! Tudo o que vi durante essa tarde já tinha feito a viagem valer a pena, mas a verdade é que muito mais estava para vir.
Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar
Ao final da tarde chegamos a Pitesti, que ao contrário de Sibiu, tem um aspeto mais degradado e menos convidativo, mas tendo em conta que íamos ficar lá a dormir decidimos conhecer parte da cidade e começamos então a caminhar por entre as estradas mal iluminadas à descoberta deste local misterioso.
Na manhã seguinte bem cedo, continuamos a nossa jornada pelas estradas romenas e paramos numa nova cidade chamada Târgoviște. Aqui tivemos a oportunidade de visitar a corte real, que é um complexo de edifícios históricos com museus.
Depois de mais algumas horas de viagem finalmente chegamos ao nosso destino, uma antiga base militar que agora serve de base para estudos ligados à conservação da natureza. Este local é composto por grandes edifícios antigos rodeados por uma vasta área natural, onde estão montadas as redes de anilhagem da estação de esforço constante “Agigea Ringing Station”. Foi aqui que ficamos durante 5 dias e tivemos a oportunidade de participar durante todo este tempo nas sessões de anilhagem. Estas começavam ao nascer do sol e prolongavam-se durante o resto do dia até à meia noite, uma verdadeira estação de esforço constante!
© Daniel Santos Photography | © Marta Ferreira
Redes de anilhagem e a nossa “casa”
A nossa grande motivação para participar nestas sessões de anilhagem foi aprender mais, não só sobre espécies que não existem em Portugal, como também aprender coisas novas sobre técnicas inerentes à anilhagem. Graças ao elevado número de redes presentes na área, eram frequentemente capturadas centenas aves por dia, pertencentes às mais variadas espécies, algumas das quais nunca tínhamos visto e muito menos anilhado.
O papa-amoras-cinzento (Sylvia curruca) foi uma das primeiras surpresas e ao longo da semana tornou-se evidente que esta é uma espécie relativamente abundante na região porque vários indivíduos foram capturados. Esta ave de tons acinzentados está distribuída por uma extensa área, incluindo grande parte da Europa, Ásia e África central, no entanto, não está presente na Península Ibérica. Outra espécie que nunca tinha visto e que tive a oportunidade de anilhar foi a estrelinha-de-poupa (Regulus Regulus), que detém o título de ave mais pequena da Europa, medindo apenas entre 8,5 e 9,5 cm e pesando 4,5 a 7,0 g. A estrelinha-de-poupa pode ser encontrada em Portugal durante o inverno, mas é escassa e difícil de ver. Uma outra espécie que não ocorre com regularidade em terras lusas e que todos nós tivemos oportunidade de anilhar foi papa-moscas-pequeno (Ficedula parva), uma pequena ave muito bonita, que se caracteriza, no caso dos machos, pela garganta e peito alaranjado durante a época de reprodução.
© Daniel Santos Photography
Algumas das aves que anilhamos
Ouvimos histórias de que por vezes corujas e outras rapinas eram capturadas nas redes, mas durante o tempo que lá estivemos apenas no último dia vimos a luz ao fundo do túnel. Um gavião (Accipiter nisus) macho tinha ficado preso numa das redes. As rapinas sempre me fascinaram, pois são animais de sentidos apurados e são predadores implacáveis. O gavião é uma ave que habita principalmente florestas, como tal, é uma ave extremamente ágil adaptada a caçar em locais com muitos obstáculos.
Gavião (Accipiter nisus)
Para além da anilhagem, queríamos aproveitar o facto de estarmos muito perto do delta do rio Danúbio para fazer observação de aves. Neste local podem ser observadas mais de 300 espécies de aves e, por isso, é considerado um verdadeiro paraíso de birdwatching, sendo uma das melhores regiões da Europa para essa atividade. Agora percebem-me, esta era uma oportunidade única a não perder e tinha a certeza que iria observar espécies que normalmente não ocorrem em Portugal. Este local é realmente espetacular e tivemos a sorte de ser guiados pelos melhores locais para birdwatching por dois amigos biólogos, a Ana e o Bogdan. Felizmente correu muito bem e consegui observar várias espécies que nunca tinha visto: pelicano-comum (Pelecanus onocrotalus), pelicano-crespo (Pelecanus crispus), pato-branco (Tadorna tadorna), mergulhão-de-pescoço-preto (Podiceps nigricollis), cisne-mudo (Cygnus olor), codornizão (Crex crex), Bútio-mouro (Buteo rufinus), entre outras espécies. Foi incrível!
Mergulhão-de-pescoço-preto (Podiceps nigricollis)
Para além das aves ainda tivemos a oportunidade de ver a tartaruga-grega (Testudo graeca), que aparentemente é comum na área da central de anilhagem. A aventura na Roménia não estaria completa sem observar uma nova espécie de anfíbio, felizmente depois de uma tarde de Birdwatching encontramos uma sapo-verde-europeu (Bufotes viridis) a deambular numa estrada de terra batida.
© Ricardo Vieira
Tartaruga-grega (Testudo graeca) e sapo-verde-europeu (Bufotes viridis)
E terminou assim uma grande aventura, desde da famosa capital húngara, passando pelas florestas dos Cárpatos repletas de ursos, até às planícies do delta do rio Danúbio, que transbordam vida. Este é um daqueles sítios que vão deixar saudades.
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Artigo original de: www.danielsantosphoto.com