A Arte Da Anilhagem Científica De Aves

As aves são um grupo de tetrápodes constituído por cerca de 10 000 espécies, espalhadas por todo o planeta. Estas evoluíram a partir de um grupo de dinossauros, conhecidos como terópodes, durante o Jurássico, há cerca de 165 a 150 milhões de anos atrás. Desde então as aves têm se adaptado aos mais variados habitats e adquirido formas e comportamentos incrivelmente peculiares.

Não é de estranhar que estes sejam provavelmente os animais que mais nos fascinam e que existam por todo mundo pessoas, profissionais e amadores, a estudá-los. A anilhagem científica de aves é um método de marcação individual, que se tornou bastante popular na investigação científica dado a sua elevada eficácia no estudo da biologia das aves.

São 6 horas da manhã de um sábado, de fevereiro, e o grupo GVC reúne-se à porta do Parque Biológico de Gaia para mais uma sessão de anilhagem. A manhã começa gélida, com o termómetro a marcar 0 °C, mas nem isso impede os participantes de pôr mãos à obra. Este grupo é composto por voluntários das mais variadas áreas profissionais, mas todos têm algo em comum, um fascínio enorme pelas aves e uma grande vontade de contribuir para a conservação da natureza.
Por entre a escuridão, o grupo apressa-se a montar as redes verticais, que têm de estar prontas antes do sol nascer. Estas redes são desenhadas de forma a serem o menos visíveis possível, aumentando assim a probabilidade de captura.

Nas redes do GVC já foram recapturadas muitas aves anilhadas a largos quilómetros de distância. Em janeiro de 2016 foi recapturada uma toutinegra-de-barrete (Sylvia atricapilla) no Parque Biológico de Gaia, anilhada em outubro de 2015 em Antuérpia (Bélgica). A toutinegra-de-barrete é uma espécie residente, no entanto, as populações portuguesas são reforçadas com indivíduos migradores oriundos do norte da Europa, durante o Inverno. A distância entre os dois pontos é de uns extraordinários 1500 km, mas é provável que este passeriforme tenha viajado muito mais, principalmente se considerarmos que a viagem de ida e volta é geralmente feita todos os anos. Um outro exemplo, é o de um rouxinol-pequeno-dos-caniços (Acrocephalus scirpaceus), com apenas 9,4 g, recapturado pelo grupo um mês depois de ter sido anilhado na Holanda, a 1578 km de distância. Apesar destas distâncias serem consideráveis, estão longe da migração mais longa do planeta, protagonizada pela andorinha-do-mar-árctica (Sterna paradisaea). Esta espécie vê dois verões por ano, pois nidifica no ártico e viaja depois para a Antártida, regressando novamente ao extremo norte, sendo a distância máxima registada até hoje de 96.000 km. Informações como estas, conseguidas muitas vezes através da anilhagem, permitem perceber os padrões migratórios das aves, o que é crucial para a conservação das espécies.

Uma hora passou desde a abertura das redes e significa que é altura de fazer a primeira ronda. Por esta hora, a atividade das aves já aumentou e ouvem-se várias espécies a marcar território. Esta azáfama antecipa uma sessão repleta de aves. Logo na primeira hora foram capturados 31 animais, pertencentes a várias espécies, incluindo, o tentilhão-comum (Fringilla coelebs), a toutinegra-de-barrete, o chapim-real (Parus major), o melro-comum (Turdus merula) e o tordo-comum (Turdus philomelos). Pergunta o leitor, como ficam as aves presas na rede? Não se magoam? As redes têm uma malha muito fina e são compostas por vários bolsos. Quando um animal voa na direção da rede, cai num dos bolsos e fica preso, sendo o risco de se magoar muito residual. Retirar as aves da rede requer muito treino e técnica minuciosa e apenas pessoas com experiência o podem fazer, garantindo o bem-estar das aves.

O grupo tem sempre alguma ideia das espécies que vai capturar em cada sessão, mas por vezes surgem surpresas. Apesar de não ser uma espécie propriamente comum no Parque Biológico de Gaia, durante o mês de fevereiro existe a possibilidade de capturar o tordo-ruivo (Turdus iliacus). Nem todos os anos acontece, mas esta é realmente uma ave muito bonita que enche os olhos aos anilhadores.

Depois de terminada a ronda, voltamos para o local onde as aves vão ser anilhadas. O tamanho e peso das anilhas estão adaptados a cada espécie, de forma a assegurar que não tenham qualquer efeito negativo para as aves. Cada anilha tem gravado um código alfanumérico único, que funciona quase como um cartão de cidadão, permitindo a distinção dos indivíduos, mesmo dentro da mesma espécie.

De seguida, são retiradas várias medidas morfométricas, o peso e também é inferida a idade, o sexo (quando possível) e as condições físicas. Mais tarde recapturamos uma trepadeira-comum (Certhia brachydactyla), uma espécie bastante especial para o GVC. Em 2008 foi anilhado um indivíduo, que foi recapturado 8 anos e uns meses depois; um recorde de longevidade para a espécie a nível mundial. Antes deste achado, pensava-se que a trepadeira-comum poderia viver no máximo até aos 5 anos de idade. A ave mais velha de que se tem conhecimento é um albatroz-de-Laysan (Phoebastria immutabilis), anilhado em 1956, estimando-se que tenha pelo menos 68 anos. Esta é mais uma das razões da anilhagem de aves ser tão importante, pois permite perceber a longevidade das espécies em meio selvagem.

O tempo foi passando, mais aves caíram nas redes e vários assuntos ligados à conservação da natureza foram discutidos. São agora 12h:15m. Depois de uma longa manhã, a temperatura finalmente subiu ligeiramente e chegou a hora de arrumar o material. Para além das espécies já referidas, foram capturadas mais 5, das quais se destacam o pardal-comum (Passer domesticus) e o estorninho-preto (Sturnus unicolor), que apesar de serem muito comuns, não são espécies capturadas com frequência. No total foram registadas na folha de anilhagem 70 aves de 11 espécies diferentes.

As espécies capturadas neste dia são consideradas comuns e podem ser observadas com facilidade no Parque Biológico de Gaia. Ao contrário do que possa parecer, estudar estas espécies é muito importante porque permite perceber a sua dinâmica populacional ao longo dos anos, dando-nos uma ideia da evolução da qualidade dos habitats, informação que é crucial para decisões de conservação. Isto é possível porque estas espécies, quando comparadas com as menos comuns, são capturadas e recapturadas com maior frequência em diferentes épocas e ao longo de vários anos.
A anilhagem é uma atividade que está ao alcance de qualquer pessoa. Se tiver interesse em participar numa sessão, o contacte o grupo . O GVC faz sessões de anilhagem no primeiro e terceiro sábados de cada mês no Parque Biológico de Gaia e todos são bem-vindos. Para além da anilhagem propriamente dita, o grupo participa também em congressos sobre a avifauna portuguesa. O nosso objetivo é muito simples: conservação da natureza e educação ambiental.

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Artigo original de: www.danielsantosphoto.com

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